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Era só um super herói


A primeira impressão que tive ao olhar essa imagem foi de nojo, causou náusea. A cada vez que vejo, gradativamente vou entendendo de maneira um pouco diferente. Pra quem não sabe, fui criado em uma comunidade pobre. Não chegava ao extremo de ser uma favela ou algo do tipo, mas digamos que as condições eram precárias em certo sentido. Meus pais, que infelizmente só tinham aquela casa, fizeram tudo sem nenhuma economia de esforços para que não faltasse absolutamente nada pra mim e pra minha irmã. E nunca faltou o necessário. Sem exageros e coisas supérfluas, assim foi minha infância. Agradeço muito, respingou muito no meu caráter. Meus amigos em sua grande maioria eram negros e muitos deles viviam em condições ainda mais precárias do que a nossa. Eu, caucasiano e de olho verde, muitas vezes enxerguei portas abertas que para eles estavam BEM fechadas. Não posso ser hipócrita de dizer que não. Eu cresci vivendo, através de meus amigos, o racismo na nossa sociedade. O mais incrível é que no meu grupo de amigos em especial, e acredito que influenciei de alguma forma, nenhum deles virou estatística. Sem mortos, sem feridos, sem ladrões, sem mães sepultando seus filhos, e acredite, onde cresci, só isso já é uma grande vitória. Meus humildes amigos hoje em dia, todos eles com suas famílias, seus empregos e suas boas intenções, são exceções de um Brasil que grita por justiça e passa por uma crise que não quero me alongar aqui. Normal era não ter emprego e tão pouco onde morar. Se for negro (como eles) então, fica bem mais difícil. Aprendi desde muito cedo como um negro é visto pela sociedade, isso quando é visto. Presenciei o racismo ao andar com eles, seja uma simples ida ao mercado como uma saída para uma cerveja à noite. O segurança que te olha atravessado, o medo de uma mulher no estacionamento, a mãe caucasiana que atravessa a rua para ficar de um lado diferente, a revista mais demorada na entrada da discoteca, um paredão da polícia ao ir à padaria. Ninguém me falou, eu vi isso. Eu vivi junto com eles o racismo. A verdade é que com mais ou menos melanina, somos sim todos iguais. Eles tinham os mesmos sonhos que eu. Emprego, salário, saúde e sobretudo paz. Eu estudei demais na minha vida, me tornei doutor em matemática e por mais que eles não tenham ido tão longe nesse quesito, tenho certeza que isso os enche de orgulho. Estufam o peito: “Sou amigo do Julio”. E eu sei disso. Eu estufo aqui: “Sou amigo de todos vocês também! Os admiro por vossas conquistas assim como vocês me admiram”. Não tenho nojo de quem é racista, talvez pena. Se eu o fosse, teria perdido grandes amigos. Sabe-se lá o que muita gente está perdendo por ai. O que aconteceu essa semana nos Estados Unidos é uma falha de todo um sistema. Um sistema que não te ensina que somos todos iguais. A verdade é que precisamos de mais bons exemplos. Eu disse bons. Estamos cheios de Trumps ou Bolsonaros, mas estamos em falta com Martin Luther King ou Malcom X. E isso faz muito mal a sociedade. A Ku Klux Klan que surgiu no século XIX era e sempre será puro ódio. Não é só “supremacia branca” como afirmam. É rancor de ver um negro feliz. Realizando seus mais simples sonhos. Aqueles sonhos inofensivos, saúde, paz, família, amor. Mal sabem eles que o branco também sofre racismo. Quando fiz doutorado na Itália passei por uma situação constrangedora (claramente não se compara a vivida por meus amigos). Dividia uma sala com outro aluno de doutorado que tinha uma orientadora que às vezes levava seus filhos a universidade. Certo dia ela deixou um de seus filhos aos cuidados do meu colega por alguns minutos e na mesma ocasião ele teve que deixar a sala por um motivo qualquer, deixando-me a sós com o garoto de cerca de 7 anos. Por uma coincidência sua mãe retorna a sala e descobre que o garoto estava sozinho comigo ali. Nunca vi alguém tão assustado. Puxou seu filho pelo braço, quase verdadeiramente machucando-o e saiu correndo da sala, me deixando a sós com minha culpa. A culpa de ser um assustador estudante de doutorado brasileiro, sul-americano, um perigo em potencial ao coitadinho do seu filho. Isso mesmo meus amigos, vos apresento o racismo na ciência. Aquela criança era tão pura que nem mesmo sabia o que estava acontecendo. Na verdade, as crianças perdem sua pureza ao crescer e dar ouvidos a certos adultos. Mas ainda pequenas, a ponto de não entenderem nada, como a criança da foto, elas só conseguem transmitir amor. A pequena mão sobreposta ao escudo do policial que é quase igual ao boneco do super herói que seu pai lhe deu de presente, é nisso que ela pensa, que o mundo é um brinquedo. Mal sabe ela que o mundo ainda vai ser castigado por ter pessoas como o pai dela. Inocente criança que dá amor e recebe em troca o retrocesso. Infelizes tempos que vivemos hoje.

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